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VESTIBULAR da Unicamp: democrático?

Os dois textos a seguir são contribuições para o debate da disciplina "Universidade e Sociedade", são leituras complementares. São textos do ano de 2003, ou seja, seus dados estão um pouco desatualizados, mas entendemos que, no seu teor, as críticas ao exame vestibular em geral e à privatização gradual da Unicamp ainda estão vigentes. Alguns pequenos avanços foram conquistados pela movimentação de trabalhadores e estudantes (pontuação extra no vestibular para negros e estudantes oriundos da escola pública; maior número de isenções). Mas, em outros aspectos, o problema se agravou, como no sucateamento do Hospital de Clínicas e a sua "porta dupla" (atendimento pelo SUS e particulares), além do aumento do número de cursos pagos de "extensão".


VESTIBULAR da Unicamp: DEMOcrático?

Reflexões a partir da política de isenção de taxa da Comvest

por Paulo José Vieira (setembro / 2003; para o Jornal Gerais)

http://www.dceunicamp.hpg.ig.com.br/publicacoes/jornal/003.htm


A nova direção da Comvest (Comissão Permanente para os Vestibulares Unicamp) assumiu com um discurso de ampliar o acesso a esta universidade. Fazer um “vestibular democrático”. Porém, nas intervenções públicas da Comvest, especialmente na figura de seu coordenador, prof. Leandro Tessler, tem-se discutido com muita superficialidade pontos fundamentais como, por exemplo, uma relação mais necessária entre o acesso (via vestibular, sob responsabilidade da Comvest) e a permanência (questões de assistência estudantil, que dizem respeito à Pró-Reitoria de Graduação).

Ainda, falta à Comvest uma discussão sobre a razão de ser do vestibular, base para questões muito importantes como a da vontade política pela inclusão de pessoas de baixa renda e de um aprofundamento no debate sobre cotas. Historicamente, coube ao movimento estudantil da Unicamp propiciar este tipo de debate, cujos bons resultados nem sempre são ouvidos pela instituição; esta estrategicamente se cala e se nega a reconhecer estes fóruns.

De qualquer forma, a Comvest implementou para o vestibular 2004 (deste ano) algumas medidas que se referem à política de isenção da taxa de inscrição do vestibular para alunos carentes. Resta avaliarmos se são estas medidas que colaboram efetivamente com um processo de democratização da educação superior e se para a Comvest e para a Unicamp há uma postura sistemática nesse sentido.


Isenção da taxa de inscrição

Conforme determinação oficial da Unicamp, o número de isenções deve ser igual ao número de ingressantes na graduação. Assim, devem ser oferecidas 2.934 isenções de taxa para este vestibular, número equivalente aos ingressantes previstos para 2004. A inovação é que este ano, além deste número de isenções integrais, haverá outras 2.934 isenções parciais (pagamento de 50% do valor da inscrição).

Reconhecer que, dentro da política de vestibulares da Unicamp, a implantação dessas isenções parciais representaria um relativo avanço não nos impede de avaliar o modo como esse processo de isenção se realiza, como é apresentado aos estudantes do ensino médio e em que medida dialoga com o conjunto de ações (se porventura existir) da Unicamp em favor da democratização do acesso.

No vestibular passado, somente 2.574 dos alunos que se enquadraram nos critérios sócio-econômicos para a isenção foram contemplados. Os representantes discentes do CONSU (Conselho Universitário), em conjunto com cursinhos populares da região de Campinas e com o DCE, exigiram que o número de isenções fosse ampliado a fim de atender a todos os selecionados na análise sócio-econômica da Comvest - receberam a recusa do reitor Carlos Henrique de Brito Cruz.

Trata-se, pois, de um número tecnocrática e arbitrariamente definido, inflexível e que se demonstra insuficiente. O vestibular 2003 contou com 46.492 inscritos; ao fixar o número de isenções em 2.574 (5,5% do total), a Unicamp aceitou como legítimo que somente este número de pobres poderia prestar o seu vestibular. Ainda, a Unicamp sugere que, pelo fato de o número de isenções ter sido equivalente ao de ingressantes, a culpa de não ter havido 100% de ingressantes pobres em 2003 é dos próprios pobres (pois a Unicamp teria feito a sua parte ao dar condições - matemáticas - para isso), e não da instituição ou do sistema ao qual ela pertence e legitima.


A divulgação

A divulgação da possibilidade de isenção da taxa e de seu cronograma é absolutamente desconhecida da maioria dos alunos de baixa renda, especialmente os da rede pública de ensino. Na maior parte das vezes, inclusive, os secundaristas da rede pública desconhecem em minúcias o que venha a ser o vestibular, que nas universidades públicas não se paga mensalidade, que há (ou deveria haver) mecanismos de assistência estudantil, etc. Em contrapartida, o vestibular da Unicamp (num momento em que não se pode mais requerer isenção de taxa) é amplamente divulgado (e atinge mais diretamente a rede privada de segundo grau e os cursinhos pagos), com a finalidade de arrecadar fortunas numa relação dialética com o “prestígio” que a Unicamp goza ao se apresentar como ilha da fantasia, sobretudo através do Manual do Vestibulando.

O prazo para solicitar a isenção de taxa foi de 1º a 19 de julho de 2003, período em que muitos dos potenciais vestibulandos sequer estão pensando no exame, ou estão em férias escolares. A preocupação com o vestibular só se dá quando as universidades se dirigem à imprensa, os manuais passam a ser vendidos nas agências bancárias (no caso da Unicamp, a partir de 25/08/2003) e os estudantes passam a debatê-lo. Quando chega este período, o vestibulando já perdeu o prazo de isenção e deverá pagar, se quiser participar dos vestibulares das três estaduais públicas (Unicamp, USP e Unesp), uma quantia superior a R$ 200,00 (além dos manuais - aos quais não há isenção - e os custos eventuais com transporte, alimentação e estadia). Em geral, o aluno de baixa renda não passa sequer por esta primeira etapa do vestibular.

É revelador o fato de a Unicamp disponibilizar o formulário de pedido de isenção em apenas 25 agências do Banespa-Santander no estado de São Paulo (enquanto são 97 as agências no estado que vendem o manual), ao passo que a venda do manual se efetua em 125 agências de todo o Brasil. Um agravante é que este ano as agências bancárias foram veementemente orientadas a entregar somente um formulário por pessoa; por exemplo, integrantes de cursinhos populares que tentaram levar mais de um formulário para entregar a colegas de suas cidades (como em anos anteriores) foram impedidos de fazê-lo.

Assim, restaram duas opções ao aluno de baixa renda que, conhecendo a Unicamp e sua natureza teoricamente gratuita, soubesse também da possibilidade de isenção de seu vestibular e quisesse pleiteá-la: ou se encaminhar a uma destas 25 agências (as despesas de viagem poderiam superar o valor da inscrição), ou acessar a Internet e imprimir o formulário de isenção, disponível no site da Comvest. Acontece que são poucos os alunos de baixa renda que têm acesso a computador conectado à Internet e com impressora colorida dotada de papel A4. A instrução do formulário era de que este não poderia ser fotocopiado (os alunos que assim o fizeram, por não lerem as orientações minusculamente grafadas, deverão ter seus pedidos sumariamente negados pela Comvest). Além do mais, são poucos os alunos que têm conhecimento do site da Comvest (um dos raros lugares em que a Unicamp divulga o cronograma do pedido de isenção) antes de adquirirem o Manual do Vestibulando. A Comvest alega que estes entraves para obtenção de isenção se devem a “questões de logística”; ou seja, são medidas meramente técnicas - que, por fazerem o jogo da restrição, se confundem com medidas políticas - que visam a “facilitar o processamento”.


Democratizar ou demagogizar

A nula divulgação da possibilidade de isenção interessa à reitoria da universidade por inúmeras razões: para que a procura pela isenção não seja exponencialmente maior em relação à atual (que, apesar de tudo, já é grande), para que mais vestibulandos carentes paguem pela inscrição (propiciando um maior faturamento à Comvest) e a oferta de isenção não pareça tão pequena, para que ingressantes de baixa renda não “saturem” os deficientes mecanismos de assistência estudantil e para que a Unicamp continue se apresentando (representando) como uma universidade livre de contradições, ideológicas e sociais.

Para que o interesse desta universidade pela democratização de seu acesso não se resuma à demagogia habitual, as primeiras medidas (ainda que paliativas ou transicionais) deveriam ser de divulgação da universidade (de maneira não fantasiosa) na rede pública de segundo grau, o que poderia ser feito conjuntamente com outras universidades, principalmente as estaduais (a Unesp tem experiências neste sentido) e com a secretaria estadual de educação. Divulgar, inclusive, de maneira prévia e ampla, a possibilidade de os alunos requererem a isenção da taxa do vestibular. Além do que, não pré-fixar um número de isenções, mas preocupar-se em atender todos os vestibulandos selecionados, por uma análise sócio-econômica menos burocrática e menos nebulosa. Uma outra medida urgente (pensando agora na permanência) seria a reconfiguração e a ampliação da política de assistência estudantil (reconhecidamente injusta e insuficiente), unificando um modelo coerente para todas as universidades paulistas.

O que tem faltado à atual gestão da Unicamp e ao governo Alckmin é vontade política no sentido de optar pela justiça social; ao contrário, demonstram hospitalidade somente ao capital privado - de transnacionais e oriundo de cursos pagos - que invade a universidade. Certas razões políticas impedem que o atual governo do estado, a atual reitoria e a coordenação da Comvest estipulem programas efetivos no sentido da democratização do acesso, substituídos pela demagogização da acessibilidade. Porém, não bastassem estes percalços, que, se superados, amenizariam injustiças e acenariam para uma nova universidade integrada a uma sociedade transformada, não poderíamos deixar de considerar as injustiças e falácias do vestibular, que refletem e reforçam o modelo de sociedade que o gerou e que o nutre.


Um vestibular democrático?

A ideologia dominante busca personalizar o problema que é estrutural, colocando a culpa no indivíduo e eximindo o seu sistema capitalista. Para superar a “culpa”, o indivíduo deve se esforçar e ser mais “competitivo”, especializar-se acriticamente e enquadrar-se à lógica do mercado, contribuindo, com isso, para a manutenção deste estado de coisas, num círculo vicioso. Resume esta ideologia a disseminação de cursinhos e de instituições superiores privadas, que se aproveitam da omissão do Estado (“mínimo”) para ganhar fortunas, fortalecer o ideário mercadológico e participar da segregação social. O vestibular, por pertencer e se adequar a esta lógica, não destoa destas regras que regem o capitalismo neoliberal; e muito pouco foi feito pelos governos neoliberais e pela Unicamp para, ao menos, amenizar estas injustiças.

Do total de 46.492 inscritos para o vestibular 2003 da Unicamp, apenas 2.690 foram admitidos. Será que aqueles que não entraram são indignos ou inferiores? Indignos não seriam, pois a educação é um direito cabível a todos, independentemente de sexo, raça, condição social, etc. Inferiores (cognitivamente), tão pouco, pois uma série de fatores sócio-econômicos e culturais é decisiva, via de regra, na distinção entre os “aptos” e “não aptos” (entre os “interessados” e “preguiçosos”, entre os “diplomados” e os “ignorantes”, entre os futuros patrões e os futuros despossuídos), além do que são criticáveis as tentativas de medição da cognição (tentativas tradicionalmente infundadas sob o ponto de vista cientifico, e racistas).

A avaliação do “aproveitamento” do aluno no segundo grau não deveria caber a uma instituição de ensino superior como a Unicamp, que simplesmente separa os “bons” dos “ruins” através do seu vestibular. A avaliação deveria ser uma preocupação contínua do Estado, e no próprio segundo grau; não uma avaliação que simplesmente culpe o aluno pelo seu “mau desempenho”, mas que avalie o próprio Estado e apresente caminhos no sentido de uma educação pública e ampla, de qualidade e transformadora.

Conclui-se, então, que o vestibular só existe porque não há vaga para todo mundo, pois não teria outra razão de ser. Se, neste ano, os 100% de inscritos tirarem nota máxima no vestibular da Unicamp, haverá vaga suficiente para todos? Não! Haverá as mesmas 2.934. E, então, qual será o critério para se escolher os 2.934 “indivíduos aptos e esforçados”? Sorteio?

Da mesma forma, quem entra na universidade pensando em ser “um profissional competitivo para o disputado mercado de trabalho” deve considerar que, no dia em que todos forem “competitivos”, ainda assim haverá desempregados (com a diferença de ser um exército de reserva um pouco mais “instruído”), pois o modelo capitalista, excludente por natureza (e cada vez mais), necessita dessa desigualdade que ele próprio cria, para se assentar, criando falsas e egoístas esperanças, propondo como natural e única a sua lógica imposta.

Mas, há um ponto de desequilíbrio deste modelo, que mais do que em outros momentos cobra de nós um engajamento em sua superação (pois, por si só, um modelo injusto não se extingue, mas só causa mais barbárie): quando os excluídos são a esmagadora maioria, quando a crueldade nos é dada à vista por ter se tornado extremamente insustentável, à beira da implosão, e por ter perdido a sua maquiagem ideológica de harmonia. No quadro geral da sociedade, exemplos de exclusão maciça são visíveis a quem queira olhar. No caso do ensino superior público, somos apenas 1% dos que concluem o segundo grau (o que já não é a totalidade da juventude), e a perspectiva é de um agravamento a cada vez que o Estado deliberadamente se desmonta para salvar o capitalismo de sua crise estrutural.

O vestibular é coerente com esta sociedade que o inventou; não falamos do vestibular que se resuma para muitos a uma inocente prova feita ao final do ano, mas sim do vestibular compreendido como um conjunto de barreiras muito mais complexas e sistemáticas: sociais, econômicas, culturais, ideológicas. “Vestibular democrático” é uma contradição em termos. O vestibular é o principal critério excludente da sociedade capitalista no que diz respeito à educação superior, e a estrutura engessada e mercadológica da universidade é a censura que interessa ao status quo para que a universidade e a sociedade não se modifiquem. Hoje, é o vestibular, como em muitas sociedades passadas foram outros os critérios da classe dominante na admissão daqueles poucos que teriam acesso ao conhecimento (ao trabalho intelectual) nos termos, consciente ou inconscientemente, por ela fixados.


- No Cursinho Popular da Moradia, dois irmãos apresentaram a mesma documentação solicitando isenção do vestibular da Unicamp este ano, sendo que só um deles foi contemplado. Uma vez que não há impedimento para que mais de uma pessoa da mesma família obtenham isenção, seriam claros os critérios?

- Das 144 páginas da Revista do Vestibulando 2003, 41 possuíam estampados em seus títulos ou subtítulos termos que enfatizavam a lógica do mercado e o senso de disputa entre estudantes e cursos (a fim de atrair mais vestibulandos, e para que os ingressantes tenham como única esta perspectiva), tais como: ranking, empresários do futuro, empresas, oportunidade, mercado, mercado de trabalho, mercado em expansão, emprego. Em anos anteriores isto não se dava de maneira tão explícita; sugere que os tempos são outros (mais competitivos, ou selvagens) e que a Unicamp vem mudando o seu caráter (de público para privado).


PERFIL DOS INGRESSANTES DA UNICAMP

Trechos extraídos do documento “Perfil de inscritos e ingressantes”, da Comvest, ref. dados do vestibular 2002, a partir do Questionário Sociocultural respondido pelos candidatos (www.comvest.unicamp.br/vest2003/16_anos.pdf) e do site do IBGE (www.ibge.gov.br).

- 76% dos candidatos não trabalham e têm seus gastos financiados pela família e 56% possuem pais com formação superior.

- Quanto à renda familiar, 36% das famílias recebem até 10 salários mínimos; 45% recebem entre 11 e 30 salários mínimos e 19% recebem mais de 30 salários mínimos.

- Apenas 12,5% dos ingressantes possuem renda familiar de 1 a 5 salários mínimos. No quadro geral da população, 52% das famílias brasileiras recebem até 5 salários mínimos (dados do IBGE).

- 65,8% dos ingressantes estudaram em escolas particulares de segundo grau; 68,5% fizeram cursinho.