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A extensão na Unicamp: construção de uma lógica privada de universidade

por Mateus Camargo Pereira, estudante de Educação Física na Unicamp, e Paulo José Vieira, estudante de Letras na Unicamp. (Maio / 2003; para o Jornal Gerais)

A extensão na Unicamp caracteriza-se pela prestação de serviço, cria diferentes categorias de professores e estabelece e reproduz relação de consumo entre universidade e comunidade.


Um quadro geral

Em 1988, as universidades públicas paulistas realizaram uma greve que durou cerca de 90 dias. O movimento "SOS Universidade" levou milhares de pessoas para as ruas em defesa da educação pública e gratuita. Como resultado da pressão da comunidade envolvida, as universidades públicas paulistas conquistaram a vinculação de um percentual do Imposto sobre a Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) ao seu orçamento. O percentual vinculado, 9,57%, foi considerado insuficiente pelas entidades representativas de professores, funcionários e estudantes para manter o padrão de funcionamento daquela época, impedindo a expansão com qualidade do sistema universitário público do estado. Os valores reivindicados (11,6% do ICMS) se tornaram uma bandeira histórica dos movimentos sociais na universidade.

Nesses últimos 15 anos, as gestões da reitoria da Unicamp vêm criando e incentivando novas formas de financiamento, abrindo mão de aliar-se aos movimentos organizados que reivindicam o aumento do percentual repassado pelo estado. Para isso, a Unicamp tratou de alterar as regras de funcionamento da Funcamp (Fundação Unicamp) em 1992, dando a ela a capacidade de gerenciar cursos, convênios e assessorias. A Extecamp (Escola de Extensão) ficou responsável, em conseqüência, por organizar e oferecer os cursos de "extensão" da Universidade a quem pudesse pagar por eles.

Dados da Escola de Extensão indicam que os valores médios dos cursos de especialização (considerados atividades de extensão) oferecidos em 2001 oscilavam entre 1 mil e 5 mil reais, sendo que boa parte deles ultrapassava os 5 mil. Isso fez com que a arrecadação passasse de 4,6 milhões em 1999 para 8,4 milhões em 2001. Detalhes significativos: somente 1% dos cursos oferecidos eram gratuitos e 70% deles tinham como pré-requisito possuir formação superior. Ou seja, além do alto custo como elemento de seleção, a escolaridade exigida mantém restrito o acesso a esse tipo de educação, depondo contra a gratuidade do ensino em estabelecimentos públicos prevista no artigo 206 da Constituição Federal. Por que os cursos de especialização não são considerados atividades de ensino, evitando assim a sua cobrança e facilitando o acesso a essa universidade?

A relação entre universidade e sociedade se dá nos mesmos termos que a relação de mercado e consumo. A chamada "extensão" institucional vem se restringindo ao público economicamente ativo, à faixa etária e de escolarização que se encaixam a esta lógica; crianças e pessoas de maior idade possuem poucas opções nesse modelo de "extensão".

Folder publicitário dos cursos da Extecamp:anúncios de venda de cursos são recorrentes na imprensa campineira e paulista


Como funciona a "extensão" na Unicamp


Qualquer docente em regime de dedicação exclusiva na Unicamp (RDIDP) pode oferecer um curso de "extensão", desde que aprovado pela comissão de extensão da sua unidade e pela congregação. O pedido vem acompanhado de uma planilha de custos, anexada a outras informações, como: características do curso, número de vagas e bibliografia. Dentre os custos, 70% são para encargos profissionais (pagamentos de serviço a professores), 8% para o Programa de Integração, Desenvolvimento e Socialização da Unicamp (PIDS), 3% para o FAEP (Fundo de Apoio ao Ensino e à Pesquisa) e 6% para a Funcamp. Entre 3 e 15% ficam para as unidades, sendo que cada uma define o seu percentual dentro desse limite (chamado de AIU).

Segundo as regras definidas pela CEPE (Câmara de Ensino, Pesquisa e Extensão do Consu), um professor pode receber até mais um salário no valor do recebido em folha de pagamento da Unicamp. Ou seja, os professores que aceitam trabalhar na "extensão" paga podem receber dois salários por mês.

Os números da defasagem de vagas no Centro de Estudos de Língua devem ser muito mais gritantes, pois não é possível contabilizar os estudantes que sequer tentam se matricular por conhecerem a grande concorrência e a dificuldade de se obter uma vaga.


O caso do CEL

O Centro de Ensino de Línguas da Unicamp (CEL) tem como função oferecer cursos para as demais unidades da universidade. Atualmente, são 27 docentes, oferecendo disciplinas como inglês, francês, alemão, russo, japonês e hebraico. Nos últimos anos, a aposentadoria de docentes levou o CEL a diminuir a oferta de vagas para estudantes cujo curso não possuísse a língua estrangeira no currículo. Segundo Paulo Oliveira, diretor do CEL, alguns institutos chegaram a solicitar reserva de vagas para seus cursos; solicitação negada pelo CEL por falta de docentes, problema generalizado na Unicamp que utiliza pós-graduandos como solução paliativa.

A Comissão Central de Graduação (CCG) realizou estudo visando a universalizar o oferecimento do Inglês Instrumental (que privilegia a leitura) a todos os estudantes da Unicamp. Essa proposta está engavetada há um bom tempo também por falta de docentes. Entre 2000 e 2002, 1.232 estudantes da Unicamp solicitaram matrícula no Inglês 1, sendo que somente 286 conseguiram se matricular. No caso do Francês 1, os números são mais gritantes: 5.828 solicitaram vagas, mas só 490 tiveram seus pedidos atendidos. Não consideramos, nesses números passados a nós pela diretoria do CEL, os estudantes que passaram horas na fila para fazer exame de proficiência e não conseguiram vagas sequer para realizá-lo. Convém, ainda, ressaltar que os números da defasagem devem ser muito mais gritantes, uma vez que não é possível contabilizar os estudantes que sequer tentam se matricular por ser sabida a dificuldade de se obter uma vaga no CEL.

O aumento de solicitações dos estudantes para os cursos de língua estrangeira levou o CEL a oferecer atividades de "extensão". Detalhe: são cursos pagos, oferecidos pelos professores do CEL ou por professores contratados pela Funcamp para essa atividade, cujas turmas são de responsabilidade exclusiva dos docentes. Os professores do CEL com regime de contratação de 40 horas semanais podem oferecer até uma disciplina na "extensão"; aqueles contratados para 20 horas podem oferecer até três disciplinas. Ou seja, os estudantes que não conseguiram vagas nas disciplinas regulares do CEL são obrigados a pagar por elas dentro da própria Unicamp. Evidencia-se uma distorção do tripé ensino-pesquisa-extensão (característica de toda a Unicamp), na medida em que essas atividades de "extensão" não têm relação com nenhuma atividade de ensino e pesquisa da universidade.

Um outro fato é preocupante: houve a ampliação de 260 vagas na Unicamp no final do ano passado, sem que a universidade projetasse muitas das demandas estruturais; por conta disso, o CEL (como muitas outras unidades) não teve novos docentes contratados para o seu quadro. O CEL vê-se obrigado a se adaptar ao seu modo para dar conta das disciplinas, que tiveram seus alunos regulares aumentados, nas mesmas salas pequenas, com os mesmos professores.

O caso da FEEC

A Faculdade de Engenharia Elétrica e Computação (FEEC) se destaca pelo desenvolvimento de alta tecnologia em suas pesquisas. O reconhecimento de sua qualidade tem feito com que ela seja procurada por empresas públicas e privadas para cursos, convênios e assessorias. A grande maioria dos 264 convênios aprovados e implementados pela FEEC nos últimos anos é feita com a iniciativa privada; Ericsson, Motorola, CPqD, Eldorado e outras empresas privadas são clientes permanentes e geram milhões em recursos. Até que ponto a pesquisa e o currículo da FEEC não estão voltados para a formação de profissionais e tecnologia para empresas transnacionais?

Muitos dos serviços têm seu valor acima de 100 mil reais. A Ericsson possui 38 convênios com a FEEC, cujos valores variam de 32 mil a 2 milhões de reais. O maior convênio foi com a CPFL, orçado em 7,7 milhões. Uma grande quantidade de recursos é repassada, em geral, para o salário dos professores envolvidos, criando uma diferenciação na categoria entre aqueles que recebem um salário adicional e aqueles que não se propõem a fazer isso por princípios. Isso enfraquece o movimento docente nas ocasiões em que o reajuste salarial está em questão.

Tendência de privatização gradual é generalizada na universidade; nas áreas em que há uma relação direta entre tecnologia e aplicação às grandes empresas transnacionais o processo é ainda mais explícito.

A Sala Microsoft

O mesmo quadro apresentado para a FEEC é evidente também em muitas das unidades cujas produções tecnológicas interessam diretamente às grandes empresas. Para suprir a carência de recursos públicos, necessários à renovação de equipamentos, as últimas direções do Instituto de Computação vêm recorrendo cada vez mais a contratos privados.

No mês de março, foi inaugurada no instituto a sala Microsoft. Simultaneamente à inauguração, muitos estudantes (em sua maioria calouros) realizavam curso de apresentação ao software livre (sistema Linux e pacote OpenOffice), oferecido pelos veteranos; dias antes, uma palestra sobre software livre havia contado com mais de 200 participantes.

Apesar de a cerimônia de inauguração da sala Microsoft estar um tanto quanto esvaziada, o reitor Carlos Henrique de Brito Cruz discursou para um seleto grupo de presentes; em inglês, "de costas para a realidade brasileira", como bem observou um dos estudantes presentes. Em um instituto em que a discussão e as iniciativas dos alunos em favor do software livre (www.gnu.org) estão muito adiantadas, a instalação da sala Microsoft representa uma ameaça; se não no sentido direto de sanção a tais, pelo menos no sentido de perpetuação da cultura Windows / Office e da tentativa de naturalizar a canalização do conhecimento para o mercado.

Da maneira como as coisas estão colocadas, seria a Microsoft parceira da Unicamp, ou a Unicamp é que se consolidaria como parceira da Microsoft? A Unicamp, ao invés de gastar milhares de reais com licenças de softwares proprietários (a cada computador instalado tem de se adquirir uma nova licença), poderia ter uma política clara e gradativa de corte de tais gastos, para direcionar recursos para outras questões fundamentais. A Microsoft que retira uma grande quantia de dinheiro do poder público brasileiro (80% de seu faturamento no Brasil) é a mesma que usa deste capital para se dizer parceira do poder público.

Concluindo

Os casos da FEEC, do IC e da Extecamp sintetizam a "extensão" na Unicamp como voltada para os interesses de um mercado que despreza a situação social brasileira. As empresas se mantêm por aqui por conta da mão de obra barata e qualificada e por favorecimentos fiscais, como a não cobrança de impostos por parte da esfera pública. Percebe-se que não há investimento público em empresas nacionais que se encarregariam de comercializar as tecnologias desenvolvidas por aqui e de absorver os profissionais formados. Resta aos estudantes aceitar as condições de estágio e trabalho impostas pelas transnacionais, que se utilizam do investimento público na formação de técnicos e no desenvolvimento de pesquisas com a finalidade de ampliar seu domínio no mercado e seus lucros. É para isso que existe a universidade pública?

Cabe à comunidade universitária e à comunidade externa debater urgentemente os rumos da privatização que vem se dando, gradual e efetivamente, nesta e em outras instituições públicas. Pensar medidas socialmente justas de curto e de médio prazo para que o financiamento público dê conta de prover a universidade; por exemplo, através de uma reforma tributária efetiva que contribua para mais recursos em áreas de compromisso do Estado (como a educação). Debater e propor medidas, também, em relação à assim chamada "extensão" na universidade, de forma a reorientar as diretrizes da instituição em favor de um modelo coerente e democrático de extensão; processo que vem sendo realizado, embora constantemente tolhido pela reitoria da Unicamp, pelos projetos de extensão comunitária. É urgente voltarmos a universidade para a dura e cotidiana realidade da maioria dos brasileiros; realidade que precisa ser reconhecida para ser encarada e superada.

(Fontes e materiais de apoio: Revista da Adunicamp, "Universidade e humanidades", Ano 4, número 1; Diretoria e coordenação de extensão do CEL; Pautas da Congregação da FEEC).